RETURN
eu pertenço aqui
(fevereiro, 2022)
eu pertenço aqui
habitando por entre Santo Sátiro, Acaracuzinho, Coqueiral, Piratininga e Alto da Picada
eu pertenço aos contornos não geográficos desse lugar
a sola do meu pé
ao tocar nesse solo vermelho
intercalado de feixes de piche
instalados pela industrialização desenfreada
tocando nesse solo
o meu corpo reconhece esse lugar
sente a energia do sangue negro, indígena derramados neste chão
em nome da industrialização
da minha boca não precisa sair nada
o meu corpo reconhece esse lugar
ele sabe como quer ocupar esse lugar
corre por entre minhas veias
memórias de coisas que não vivi
mas que reenceno quando começo a ouvir
- o vento tocandos as folhas
- o som do metrô chegando na próxima estação
- o canto distante e profundo das maracanãs
- o zumbido da bomba hidrelétrica do açude Santo Antônio do Pitaguary
nesses instantes
meu corpo me lembra
eu pertenço aqui
aqui
que é hoje
amanhã
e ontem
que sou eu
minhes sobrinhes
meus ancestrais
a procura dos meus
reencontro-os no eu
isto não é psicanalitico
é epigenético
trauma coletivo
que se reatualiza em mim
eu pertenço aqui
fui embora, mas você não saiu de mim
lembro-me das minhas andanças ainda criança
da quantidade de vezes que saia correndo da estação
percorrendo toda a avenida central
indo em direção a casa de minha tia
adorava comer os salgadinhos do tio Zé
morria de medo das vaquinhas e touros criados pelo vizinho
e jamais esquecerei das inúmeras estratégias que criei para não ter que cruzar meu caminho com o das vaquinhas
morria de medo de ser chifrada
pois já tinha esse tipo de experiência na família
lembro também das idas a igreja
das várias igrejas
são francisco, nossa senhora de fátima e nossa senhora aparecida
embalaram muito meus domingos
Milton Dias me acolheu como ninguém havia acolhido antes
muitas professoras ali me viram pela primeira vez
acreditavam em mim mais do que eu em mim mesma
e olha só no que deu
aprendi a acreditar em mim tbm
e isso fez com que eu saísse daqui
fui alçar vôos longos e distantes
visitei e morei em outros lugares
fui embora, mas você não saiu de mim
me descobri muitas coisas
fazendo as pazes com lugares e pessoas
e foi nesse processo que voltei para ti
de forma física, emocional, política e psicológica
tinham tantas maracanaús em mim
tantas, mas tantas
que no processo de reencontro, me perdi
até que um certo dia
em busca das maracanãs, me reencontrei
me deparei com uma imagem que refletia nas águas do açude santo Antônio do Pitaguary
tentando me encontrar, me vi maracanã
pesada, encharcada
mas com muita certeza do pertencer ao lugar que ali estava
confesso que a despedida foi necessária
talvez, se eu não tivesse ido embora daqui
nunca teria sido encantada por essa cidade
e tampouco me descoberto maracanã
(fevereiro, 2022)
quando me fiz maracanã pela primeira vez
(março, 2022)
na primeira vez em que mergulhei no açude Santo Antônio do Pitaguary
me senti maracanã
sentia cada parte do meu corpo se encharcando, como se eu estivesse coberta de penas
demorei alguns segundos embaixo d'água
ouvi atentamente o som da bomba hidrelétrica
ao me levantar
percebi que o peso das penas era real
eu estava ali em pé
transformada
entendendo tudo
e ao mesmo tempo não entendia nada
olhava para as árvores ao meu redor
reconhecia minha morada
ouvia um chamado
estava me reencontrando naquele lugar
quis correr
quis gritar
gritei
mas um outro som audivel se fez
era um canto forte
estridente
e estranhei
pois não sei cantar
não conseguia identificar do que aquele canto se tratava
sai do açude
em silêncio fiquei
arrumei minhas coisas
e tratei de seguir meu caminho
foi somente pedalando pelas Ruínas que percebi que meu corpo não estava ali
que ao menos, não era o corpo que eu conhecia
e tampouco eu estava pedalando
mas sim sobrevoando
por entre as árvores que não foram devoradas pela cidade
foi nesse dia que me fiz maracanã pela primeira vez.